Na última (2007-2010) e na atual legislatura (2011-2014), a Câmara dos Deputados tem sido palco da atuação de parlamentares que vem propondo verdadeiros retrocessos em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, tais como: a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o aborto clandestino e com isso intensificar a criminalização de mulheres e profissionais de saúde; além de propostas legislativas que pretendem proteger o direito à vida desde a concepção.
Diante deste fato, vimos a público repudiar as tentativas de retrocesso pelos motivos expostos a seguir.
1. CPI desta natureza não se justifica pelos meios que se pretende usar para alcançar a finalidade a que se destina. Ao contrário, sugere uma perspectiva punitiva no trato de tema complexo e delicado.
2. A magnitude do fenômeno do aborto no país vem sendo tratada no âmbito do Executivo brasileiro como questão de saúde pública. O aborto clandestino e inseguro atinge diretamente pelo menos cerca de 230.000 mulheres que são internadas anualmente, na rede pública de saúde, para tratar de complicações resultantes de procedimentos inadequados de interrupção da gravidez.
3. A prevenção ao aborto inseguro deve ser implementada através de políticas de saúde mais amplas de acesso a contracepção e a educação sexual, bem como ampliando-se o acesso ao aborto nos casos previstos em lei. A ampliação e intensificação da criminalização não previne o aborto nem reduz a sua incidência.
4. Uma ação legislativa e de políticas públicas que se paute pelo bem público e pelo interesse coletivo deve assegurar a prevenção do aborto realizado em condições inseguras através de políticas de saúde adequadas. Não deveria jamais instigar ações policialescas e a lógica punitiva que desconhece ou minimiza a realidade social que cerca o fenômeno e as e as informações científicas sobre suas causas e efeitos.
5. Sem dúvida, a questão da ilegalidade do aborto no Brasil merece um debate sério e aprofundado. No entanto, tal não é o objetivo desta CPI, que mascara a verdadeira intenção pretendida com sua instalação: a de intensificar a perseguição e criminalização das mulheres, profissionais de saúde e organizações feministas.
6. Outra iniciativa deste grupo conservador é a aprovação do projeto de lei denominado Estatuto do Nascituro. Tal projeto pode ter efeitos perversos para a saúde e a vida das mulheres, uma vez que pode ameaçar o acesso ao aborto nos casos previstos em lei, colocar barreiras no acesso a saúde para tratamento das complicações de aborto. O projeto confere direito absoluto a vida aos embriões em detrimento dos direitos das mulheres.
7. Além disso, uma proposta de emenda à Constituição para garantir a proteção da vida desde a concepção que pretende acrescentar ao artigo 5º do texto constitucional a expressão “desde a concepção” na parte que trata da inviolabilidade do direito à vida. O texto atual refere-se apenas à vida, sem especificações. Esta iniciativa pode criar barreiras desnecessárias para o acesso à contracepção e à anticoncepção de emergência, sob o argumento da proteção ao direito à vida desde a concepção.
8. Tais estratégias, entretanto, não são novas. As forças conservadoras e religiosas representadas na Assembléia Nacional Constituinte que se opunham frontalmente aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, sofreram inúmeras derrotas. Uma das mais importantes foi a tentativa fracassada de incluir no texto constitucional a “inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”. Posteriormente, em 1995, um grupo de parlamentares católicos e evangélicos apresentou uma proposta de emenda constitucional para, outra vez, tentar criminalizar o aborto em qualquer circunstância. Uma ampla campanha do movimento de mulheres em todo o país levou os conservadores a mais uma derrota fragorosa: o Plenário da Câmara dos Deputados, com 351 votos contra, 33 a favor e 16 abstenções rejeitou terminantemente, em abril de 1996, a PEC. Novamente, em 2003, o ex-deputado Severino Cavalcanti apresentou a PEC 62/2003 com teor semelhante, que foi arquivada no início de 2007.
9. Esta iniciativa ameaça o direito ao aborto nos casos previstos em lei e se opõe frontalmente a decisão do Supremo Tribunal Federal que autorizou a pesquisa com células tronco embrionárias. Segundo a decisão do Supremo, a Constituição Federal brasileira é clara no que diz respeito à proteção do direito à vida, conferindo tal proteção a partir do nascimento com vida. O voto do Relator na ADI 3510 esclarece a questão quando estabelece que“o conceito da vida humana está revestido de uma dimensão biográfica mais do que simplesmente biológica, que se corporifica em sujeito capaz de adquirir direitos e contrair obrigações em seu próprio nome, a partir do nascimento com vida”.
Entendemos que tais propostas legislativas, como a criação de uma CPI e as que versam sobre a proteção do direito a vida desde a concepção, podem aprofundar o estigma social que cerca o tema do aborto e não devem proposperar pois violam direitos garantidos por lei. As mulheres de baixa renda, negras, com pouca escolaridade, jovens e com limitado acesso aos serviços de planejamento familiar são as mais vulneráveis. É este o grupo que corre o maior risco de morrer ou sofrer complicações devido a abortos inseguros. Por tais motivos, acreditamos que tais iniciativas trariam consequências nefastas para a saúde pública e para a vida das mulheres, gerando insegurança jurídica e ameaças às liberdades fundamentais garantidas pela Constituição Federal.
Assinaturas
Aníbal Faúndes, Coordenador do Comitê de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Federação Latino-Americana de Sociedades de Obstetrícia e Ginecologia (FLASOG) e um dos fundadores do Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp)
Aton Fon, Advogado
Beto de Jesus, educador, Diretor da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABGLT)
Cecilia Sardenberg, Professora de Antropologia da Universidade Federal da Bahia. Coordenadora Nacional do OBSERVE- Observatório da Aplicação da Lei Maria da Penha.
Cristião Rosas, Secretário da Comissão Nacional Especializada em Violência Sexual e Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO)
Debora Diniz, Antropóloga e professora da Universidade de Brasília
Eduardo Homem, Jornalista
Fernanda Benvenutti, Parteira, diretora da ABGLT e membro do Conselho Nacional para os Direitos das Pessoas LGBT
Guacira Cesar de Oliveira, Diretora colegiada do Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA
Irina Bacci, Fisioterapeuta, Secretária Geral da ABGLT, membro da Associação Brasileira de Lésbicas
Jaqueline Pitanguy, Socióloga e diretora da CEPIA
José Eustáquio Alves, Demógrafo e professor da Escola Nacional de Contabilidade e Estatística (ENCE)
Roberto Lorea, Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Sul
Luiz Mello, Sociólogo, coordenador do Núcleo de Estudos Ser-tão, da Universidade Federal de Goiás
Maíra Fernandes, Advogada e presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/RJ
Maria Beatriz Galli, Advogada, consultora do Ipas Brasil e membro do Comité Latino Americano e do Caribe pela Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM
Maria Betania Ávila, Socióloga e diretora do Instituto SOS Corpo Gênero e Cidadania
Maria José Araújo, Médica, relatora para o Direito a Saúde, da Plataforma Brasileira de Direitos Econômicos, Sociais Culturais e Ambientais
Maria Luiza Heilborn, antropóloga co-cordenadora do Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos/ IMS-UERJ
Paula Viana, Enfermeira, Coordenação Colegiada do Grupo Curumim (PE), Secretaria Nacional Executiva das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro
Rivaldo Mendes, Vice-Reitor da Universidade de Pernambuco (UPE)
Rosane M. Reis Lavigne, Defensora Pública no Estado do Rio de Janeiro
Schuma Schumaher, Feminista, escritora e coordenadora executiva da Redeh
Sérgio Amadeu, Professor da Universidade Federal do ABC e pesquisador de cibercultura.
Sonia Corrêa, Pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política
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