A esquerda não é uma bolha. Talvez para grande maioria dos homens ligados ao movimento social em geral esta ficha custe a cair, compreender que também fazemos parte da sociedade e assim como qualquer outra pessoa e portanto estamos passíveis de reproduzir o machismo, racismo, homofobia e tantos outros preconceitos existente por aí.
Não é raro nos depararmos com casos de agressões, intimidações e qualquer outro tipo de violência contra a mulher também em espaços dos movimentos sociais, partidos de esquerda e qualquer outra forma de organização política crítica ao status quo. Porém ao invés de serem o primeiro espaço aberto para o combate ao machismo, normalmente o que vemos é a diminuição da importância dos casos de agressão, intimidação e outras violências, como se não fossem problemas políticos também, infelizmente o espaço da organização política é onde percebemos o quanto a nossa luta é secundarizada neste mundão, como se revoluções não passassem também pela mudança na relação social entre mulheres e homens.
Na verdade vemos a esquerda adaptar à sua realidade a divisão sexual do trabalho. É uma espécie de divisão sexual da militância na qual o homem ocupa o espaço público como figura pública do partido, movimento ou entidade que for e na grande maioria das vezes é também quem formula a política a ser tocada nos espaços e a mulher cumpre a tarefa do espaço privado, ou seja, organiza a reunião, escreve a relatoria e qualquer outro trabalho de secretariado existente nas organizações políticas, tanto que Alexandra Kollontai era a única mulher no bureau do partido bolchevique no período revolucionário e durante reuniões era dela a tarefa de passar um cafezinho para os outros companheiros. Quantas mulheres dirigentes políticas nós vemos citadas nas intervenções em atos, assembléias, plenárias ou congressos? No máximo uma citação da Rosa Luxemburgo e mesmo assim ainda é raro. No final das contas precisamos localizar muito bem qual é tanto o nosso lugar na política quanto qual o lugar do feminismo na política e não é tarefa simples, assim como combater o machismo diariamente na sociedade também não é.
Muitas vezes vemos mulheres ligadas ao fazer político denunciando alguma atitude machista de um companheiro e as reações basicamente são as mesmas que vemos no resto da sociedade: não devemos tratar disto pois é um problema pessoal e não político; que se trata de uma histérica; a denúncia foi motivada por vingança pessoal e tantos outros subterfúgios tão questionados pelas feministas quando há casos de violência machista em outro espaço da sociedade que não seja o político. Porém na hora que aparece o quiprocó no seio da esquerda nos deparamos com o corporativismo das organizações, se é denúncia contra alguém do meu partido, movimento ou entidade é uma calúnia, e se o caso de machismo é no quintal do outro vemos muitos se levantarem com o rabo sujo para apontar dedos.
Qual a grande diferença entre a ameaça de morte feita por um companheiro de esquerda e a ameaça de morte de um homem não envolvido com a política? A mão de um militante de movimento social é mais leve do que a do trabalhador? A intimidação de um camarada de uma entidade combativa à uma companheira em um espaço de disputa política é menos intimidação do que a do cara na balada em cima de uma garota? Não, não há diferenças, pois todas as situações estão baseadas na mesma coisa o machismo e um não é menos pior do que o outro e cabe a nós feministas apontarmos sim o dedo na cara da hipocrisia sem medo de retaliação ou puxada de orelha.
Este começo de ano ouvi diversos casos sobre machismo no movimento social, dois deles me chamaram a atenção: no Espírito Santo e em São Paulo. O primeiro envolvia uma militante e um militante do Fejunes e o segundo do MPL/SP. Em ambos os casos os agressores foram denunciados na base do movimento e as organizações foram cobradas para darem uma resposta política às denúncias de agressão, infelizmente apenas o Fejunes reconheceu a gravidade da situação afastando imediatamente o agressor de suas tarefas junto ao fórum e tomando as medidas cabíveis de formação e debates entre os militantes do fórum.
Já em São Paulo acabamos assistindo uma série de ataques a premissa de autodefesa feminista e da necessidade da denúncia dos agressores, muitas vezes se pautando na formulação equivocada de que o escracho promovido por algumas militantes feministas ao militante do MPL/SP em um dos atos contra o aumento da passagem de ônibus era um retrocesso a luta feminista, ora, em ambos os casos por conta da coragem – vamos combinar não é a coisa mais fácil do mundo você denunciar publicamente um agressor junto à sociedade, imagine em um espaço no qual as pessoas se julgam livres de qualquer tipo de preconceito – destas mulheres ao denunciarem suas agressões outras mulheres também vieram a público para falar que também foram violentadas fosse fisicamente ou psicologicamente, e os relatos se passavam em estados diferentes e com organizações políticas também diferentes.
Foi histeria coletiva de mulheres que nem se conhecer se conheciam? Não se nega a importância de lidar com a questão da violência contra a mulher como um problema social, mas isso não é sinônimo de desonerar o agressor de suas responsabilidades, ainda mais quando são atitudes que além de violentar inibem a participação política das mulheres em espaços importantíssimos, ou lutar contra o aumento das passagens, abertura de bolsas nas universidades não são pautas das mulheres também? O que eu vejo é na verdade uma grande falta de formação e formulação da esquerda brasileira sobre as opressões específicas em geral, ou alguém aí acha que em um país onde a maioria dos pobres é negra e mulher muda-se algo sem ser feminista e antirracista?
Poderia passar horas escrevendo sobre “causos” da esquerda envolvendo atitudes machistas, mas o intuito é justamente refletir o motivo de tanta resistência desses homens, e até mesmo mulheres, lutadores pela mudança social compreenderem que também perpetuam o machismo e se realmente há vontade de mudar a sociedade precisamos fazê-lo de forma completa, compreendendo a misóginia, racismo, homofobia e outros preconceitos como breques da nossa luta.
É mais fácil para os homens, digo, homens da esquerda, se relacionar com mulheres sem consciência e concepção feminista. Pois, no fundo, oprimir alguém para que esta dependa de alguma forma – seja subjetiva ou objetiva -, é mais fácil e mais cômodo
Óbvio que não é nada fácil peitar os homens nos espaços políticos – ainda mais se há acordo em boa parte da política com eles -, pois se não bastasse a violência física sofrida pelas mulheres, estas, quando decidem pela denúncia, sofrem a violência psicológica de uma sociedade machista e dos movimentos sociais que sequer sabem lidar com coerência frente à situação.
Vejo uma luz no fim do túnel quando mulheres resolvem dar um basta de vez a atitudes machistas dentro da esquerda brasileira e colocar que para nós o feminismo tem lugar na políticaaté porque fazer a dissociação entre a luta política e a luta feminista é, no mínimo, cruel com as mulheres, pois não são coisas dissociadas. É preciso dizer com todas as letras que não haverá transformação real se isso não passar pela transformação social das relações entre mulheres e homens. Só dar uma olhada nas pesquisas feitas pelo IBGE, ONU e tantas outras para ver quem está na base da pirâmide social, definitivamente não são os homens. A pobreza tem sim cor e gênero e passar batido por isso é não compreender a complexidade da sociedade em que vivemos, é recair em erros históricos.
Avança o feminismo sim quando temos força e respaldo para cobrar aos movimentos sociais coerência e não complacência com a violência machista, quando forçamos nossas companheiras e, porque não, nossos companheiros a se posicionarem e não mais serem testemunhas silenciosas, quando temos força para dizer que: Nenhuma agressão passará impune!
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