Apresentação

O grupo de gênero se insere na discussão do poder de uma sociedade machista e ter um marco emancipatório para a participação política das mulheres, tendo-as como sujeito. Debatendo o cotidiano, as relações familiares e/ou privadas, às relações institucionais da economia, da política e da cultura e suas dimensões objetivas e subjetivas simultaneamente. Este GT reúne os pontos de cultura que atuam na perspectiva da emancipação feminina, na luta contra a opressão e a violência contra as mulheres e pela afirmação da igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A musa despedaçada: representações do feminino nas canções brasileiras contemporâneas

 
labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier/juin 2010 -janeiro/junho 2010
Ana Carolina A. T. Murgel

Resumo
No livro “Um teto todo seu”, de 1928, Virgínia Woolf escreveu sobre um crítico que se sentia incomodado com o surgimento de uma consciência feminista na literatura. Para a autora, esse crítico protestava contra a igualdade do outro sexo através da afirmação da própria superioridade. Na música brasileira, as hierarquias e desigualdades nas relações de gênero também estiveram presentes, mas, a partir do final dos anos 1960, surge uma produção feminista mais específica no trabalho das compositoras. Com a contracultura, os micropoderes são questionados e, de forma semelhante à observada por Virgínia, esses trabalhos também provocaram reações inesperadas.  Procuro discutir, neste artigo, como são construídos e desconstruídos os estereótipos sobre as mulheres na MPB a partir dos anos 1960, buscando também compreender, através da análise de canções, se de fato, como dizem, o feminismo já cumpriu seus desafios.
Palavras-chave: relações de gênero, música popular brasileira, feminismo

 
No livro “Um teto todo seu”, de 1928, Virgínia Woolf escreveu sobre um crítico que se sentia incomodado com o surgimento de uma consciência feminista na literatura. Esse crítico protestava contra a igualdade do outro sexo através da afirmação da própria superioridade. Para a escritora inglesa, as investidas feministas provocaram reações sexistas por parte dos homens:
Nenhuma era jamais conseguirá ser tão ruidosamente consciente do sexo quanto a nossa; esses incontáveis livros escritos por homens a cerca de mulheres no Museu Britânico são prova disso. A campanha pelo sufrágio sem dúvida teve culpa. Ela deve ter despertado nos homens um extraordinário desejo de auto-afirmação; deve tê-los feito colocar no próprio sexo e em suas características uma ênfase em que não se teriam dado o trabalho de pensar, se não tivessem sido desafiados. E quando se é desafiado, mesmo por umas poucas mulheres de bonés pretos, retalia-se, caso nunca se tenha sido desafiado antes, com bastante excesso. (WOOLF, 1990:121)
Na música brasileira, as desigualdades nas relações de gênero estiveram sempre presentes, mas, a partir do final dos anos 1960, surge uma produção feminista mais específica no trabalho das compositoras. Com a contracultura, as hierarquias e os micropoderes foram questionados. Diversas compositoras brasileiras construíram em suas canções múltiplas visões sobre as mulheres. As letras produzidas por elas trouxeram a reinvenção do feminino, que até então era marcado principalmente pelo o discurso masculino. A partir dos anos 1970, o pensamento feminista e libertário se apresenta em suas composições, bastante marcadas pela relação sujeito-sujeito, como mostra Luce Irigaray em “A questão do outro”: privilegiando as relações solidárias, não hierárquicas (IRIGARAY, 2002).
De forma semelhante à observada por Virgínia, enquanto as mulheres se construíam a partir de sua própria experiência, suas vozes também provocaram reações inesperadas. Ainda nos anos 1970, Martinho da Vila reagia ao feminismo numa tentativa de depreciar as conquistas femininas, em canções como “Você não passa de uma mulher” (1975):
Mulher preguiçosa, mulher tão dengosa, mulher
Você não passa de uma mulher, ah, mulher
Mulher tão bacana, tão cheia de grana, mulher
Você não passa de uma mulher, ah, mulher
Você não passa de uma mulher
Olha que moça bonita,
Olhando pra moça mimosa e faceira,
Olhar dispersivo, anquinhas maneiras,
Um prato feitinho pra garfo e colher
Eu lhe entendo, menina,
Buscando o carinho de um modo qualquer
Porém lhe afirmo, que apesar de tudo,
Você não passa de uma mulher, ah, mulher
Você não passa de uma mulher
...
Olha a moça inteligente,
Que tem no batente o trabalho mental
QI elevado e pós-graduada
Psicanalizada, intelectual
Vive à procura de um mito,
Pois não se adapta a um tipo qualquer
Já fiz seu retrato e apesar do estudo,
Você não passa de uma mulher, viu, mulher?
Você não passa de uma mulher, ah, mulher
Menina-moça também é mulher, ah, mulher
Pra ficar comigo tem que ser mulher, tem, mulher
Fazer meu almoço e também meu café, só mulher
Não há nada melhor do que uma mulher, tem mulher?
Você não passa de uma mulher, ah, mulher
(“Você não passa de uma mulher”. Martinho da Vila, 1975)[1]

Na letra, ele faz a estereotipada conexão do feminismo com o lesbianismo, muito comum nesse período (assim como o discurso da frigidez e da feiúra): no discurso misógino, se as feministas reclamavam, “só podia serporque não gostavam de homens. Em seguida desdenha das mulheres que conseguiram subverter a lógica patriarcal construindo carreiras ou estudando. O bordão "você não passa de uma mulher" deprecia as conquistas feministas - as mulheres só servem para fazer o almoço e o café para os homens, e ele lembra: tem que ser bem mulher. Podemos perceber o excesso na letra a que se referiu Virgínia Woolf: Martinho está dizendo o que é uma mulher de seu próprio ponto de vista, completamente convencido de que, se não sabe quem é ela, tem certeza do que deve ser.
Rita Lee vai ironizar, mais tarde, a mulher passiva construída pelo olhar masculino:

Bwana Bwana
Me chama que eu vou
Sou tua mulher robô
Teleguiada pela paixonite
Que não tem cura
Que não tem culpa pela volúpia
Bwana Bwana
Teu desejo é uma ordem
Te satisfazer é o meu prazer
Que não tem jeito
O meu defeito é não saber parar
Adeus sarjeta
Bwana me salvou
Não quero gorjeta
Faço tudo por amor
Bwana Bwana
Não sei cozinhar
Mas sou carinhosa
E tenho talento
Pra boemia
Corre sangria nas minhas veias
Adeus sarjeta
Bwana me salvou
Não quero gorjeta
Faço tudo por amor
(“Bwana” - Roberto de Carvalho e Rita Lee, 1987)

Em um texto recente, Heloísa Buarque de Hollanda pergunta se valeram a pena as lutas feministas (HOLLANDA, 2003). Essa inquietação é compartilhada pelas mulheres que participaram ativamente na tentativa de transformação do modelo falo e eurocêntrico da cultura ocidental. A proposta do feminismo nunca foi substituir o masculino pelo feminino:
[...] para além do questionamento da política e das restrições da cidadania, o feminismo expandiu sua crítica para as bases de constituição da racionalidade que norteia as práticas sociais e sexuais. Estendeu a crítica às próprias formas da cultura, revelando como a dominação se constitui muito mais sofisticadamente nas próprias formas culturais que instituem uma leitura da política e da vida em sociedade, convergindo com outras correntes do pensamento pós-moderno, como “o pensamento da diferença”. Nesse sentido, longe de pretender destronar o “rei” para colocar em seu lugar uma “rainha”, o feminismo propõe a destruição da monarquia no pensamento e nas práticas sociais, inclusive dentro de si mesmo. (RAGO, 2001:65)
É claro que podemos perceber a feminização da cultura nas artes (Heloísa vai apontar para isso no texto citado), mas o modelo masculino ressentido e reativo também continua presente. O que nos surpreende é que ele raramente é denunciado e continua manifesto nos movimentos culturais e na literatura especializada sobre a canção popular, que é aqui o nosso interesse.
Apontados em grande parte dos textos acadêmicos como uma verdadeira revolução pela forma agressiva com a qual denunciam a miséria e o racismo, os Racionais MC’s são versados na construção de estereótipos sobre o feminino. No rap “Mulheres vulgares, o grupo cria uma ponte entre feminismo e vulgaridade, com uma letra carregada do ranço sexista:

[...] Se liga aí:
Derivada de uma sociedade feminista
Que considera e dizem que somos todos machistas.
Não quer ser considerada símbolo sexual.
Luta pra chegar ao poder, provar a sua moral
Numa relação na qual
Não admite ser subjugada, passam a andar pra trás.
Exige direitos iguais
E o outro lado da moeda, como é que é? [...] Pra ela, dinheiro é o mais importante.
Sujeito vulgar, suas idéias são repugnantes.
É uma cretina que se mostra nua como objeto,
É uma inútil que ganha dinheiro fazendo sexo.
No quarto, motel, ou tela de cinema
Ela é mais uma figura viva, obscena.
Luta por um lugar ao sol,
Fama e dinheiro com rei de futebol! (ah, ah!)
Ela quer se encostar em um magnata
Que comande seus passos de terno e gravata. (otário)
Quer ser a peça central em qualquer local.
E a jura é total,
Quer ser manchete de jornal.
Somos Racionais, diferentes, se não iguais.
Mulheres Vulgares, uma noite e nada mais!
E aí, Brown? Cola aí, e tal...
Fala aí tua parte, e tal
Ô, falo sim! Peraí, peraí.
É bonita, gostosa e sensual.
Seu batom e a maquiagem a tornam banal
Ser a mau, fatal, legal, ruim... Ela não se importa!
quer dinheiro, enfim.
Envolve qualquer um com seu ar de ingenuidade.
Na verdade, por trás vigora a mais pura mediocridade.
Te domina com seu jeito promíscuo de ser,
Como se troca de roupa, ela te troca por outro.
Muitos a querem para sempre
Mas eu a quero por uma noite, você me entende?
Gosta de homens da alta sociedade.
Até os grandes traficantes entram em rotatividade.
Mestiça, negra ou branca
Uma de suas únicas qualidades: a ganância.
A impressão que se ganha é de decência
Quando se trata de dinheiro e sexo, se torna indolência.
Fica perdida no ar a pergunta:
Qual a pior atitude de uma prostituta?
Se vender por necessidade ou por ambição?
Tire você a conclusão.
Mulheres vulgares, uma noite e nada mais. [...]
Então, irmão, é de coração.
Abra os olhos e veja a razão.
Querer, poder, ter
Não é pra você se proteger, prever antes de acontecer.
E hoje ela diz: "Que cara vou dormir?"
Com seu rosto bonito é fácil atrair, e daí...
Pra sair não precisa insistir.
É ser alguém e estalar os dedos assim (plec!)
Francamente ela se julga capaz
De dominar a qualquer idiota que tenha conforto pra dar.
Não importa a sua cor, não importa a sua idéia,
Apenas dinheiro esnobando, jogando pela janela.
Não entre nessa cilada.
Fique esperto com o mundo e atento com tudo e com nada.
Mulheres só querem/preferem o que as favorecem
Dinheiro e posse, te esquecem se não os tiverem.
Somos Racionais, diferentes, se não iguais.
Mulheres vulgares, (o quê) uma noite e nada mais! [...]
(“Mulheres vulgares”, Edy Rock e KL Jay, 1990)

Nas canções do grupo, as mulheres são divididas entre “mães santificadas”, que se sacrificam pelos filhos e “mulheres interesseiras”, cujo único propósito é subir na vida através do relacionamento com homens ricos e tolos: os otários, como diz o rap. Dessa forma, o grupo hierarquiza as relações: se por um lado são oprimidos pela raça e pela classe, se mostram igualmente opressores nas relações de gênero. É claro que o sentido revolucionário frequentemente atribuído ao grupo com isso se perde: não há subversão onde persiste a hierarquização e a sujeição de um grupo por outro - o discurso político se esvazia.
Em um dos poucos trabalhos acadêmicos que abordam a questão do gênero no Hip-Hop, Mariana Semião de Lima mostra a dificuldade das compositoras e cantoras rappers em conseguir respeito pelo seu trabalho num gênero predominantemente masculino. Comentando sobre os Racionais, uma das rappers entrevistadas pela autora afirma que, ao conservar as imagens estereotipadas da ideologia dominante, “o cara não se tornou um hip hopper, ele só está usando um elemento daquela cultura [...] Porque conservou os valores da sociedade que detesta. Como você vai conservar alguma coisa de alguém que você não quer na sua vida?” (SHARILAYNE apud LIMA, 2005:61).
Vejamos agora a sensibilidade de uma compositora nascida e criada na zona norte carioca, tratando das mulheres chamadas de vulgares pelos Racionais MC’s:

Sol a pino. A telha vã
esquenta o pó da minha casa
esquenta a bilha d'água
De tanto que ferve na minha mão
agulha e pano, armas de todo dia
Na minha mão tesouro e fé
e pé na mesma tábua em falso
(destino e descalço)
Desde manhã sentada e presa aqui
rasgando as sedas das rainhas
os brancos das donzelas
que no escuro da cidade alguém há de despir
Ninguém verá tão belas
filhas da falsidade
A vila é tão pequena e infeliz sem elas que...
(são doze pancadas), são doze ruelas
que desgraçadamente sempre vão dar
numa mesma praça seca
de noite suspirada,
De noite tão imensamente farta das paixões do dia.
De noite suficientemente larga pras bandalharias.
Meninas que se vem chegando aqui:
cinturas ainda finas, medir felicidade.
No rosto a marca dos batons
das senhoras de bem, as damas da cidade.
No peito arfante o roxo das mordidas mais ferozes
Filhos da mesma terra, andantes e viajores,
rapazes e senhores de mais realidade.
São doze pancadas (são doze dadas)
A lua a pino e eu já sei
que vou entrar na madrugada
rematando bainhas,
pregando rendas que amanhã vai ser
o baile das rainhas.
Amanhã, já se sabe que elas vão fazer
a história da cidade.
São muito cinderelas.
(“Meninas da cidade”. Fátima Guedes, 1979)

Essa canção é do primeiro disco de Fátima Guedes, onde quase todas as gravações evocam a vida miserável nos lares dos subúrbios. A letra conta a história de uma costureira que varando o dia e já entrando na madrugada, cose as roupas das garotas, ainda meninas, que se prostituem. Ela percebe a falta dessas meninas num lugar em que a infância se perdeu, enquanto elas estão se vendendo para os homens, para as damas, para qualquer um que possa realizar o sonho da felicidade prometida em todas as histórias infantis. Cinderelas em busca de um sonho que acreditam existir, a garota pobre que um dia vai encontrar um príncipe que a fará feliz para sempre em um castelo. E a narradora costureira, que também pode representar as contadoras de histórias, as Parcas costurando o fio da vida e cortando o último fio para a morte. Penélope construindo e reconstruindo sua memória ao tecer durante o dia e desmanchar a mortalha na madrugada. Imagens femininas que saltam da letra da compositora, carregada de silêncios e compreensão. Cosendo o feminino em suas histórias, de forma muito diferente do discurso agressivo no masculino rap apresentado.
O mesmo grupo Racionais MC’s também reforça a matriz binária mãe x mulher degenerada. A mãe é retratada como a que se sacrifica, e é por ela que o homem se transforma em menino e promete mudar:

Hoje eu sou ladrão, artigo 157,
As cachorra me amam,
Os playboy se derretem,
Hoje eu sou ladrão, artigo 157,
A polícia paga um pau,
Sou herói, dos pivetes,
Família,
Em primeiro lugar,
É o que há,
Juro pra senhora mãe,
Que eu vou parar,
Meu amor é seu,
Brilhante num cofre,
Enquanto eu viver,
A senhora nunca mais sofre, [...]
Me perdoe,
Me perdoe mãe,
Se eu não tenho mais o olhar,
Que um dia foi, te agradar,
Com cartaz, escrito assim: /12 de maio,
Em marrom,
Um coração azul e branco,
Em papel crepom,
Seu mundo era bom [...]
(“Eu sou 157”, Racionais Mc's, 2002)

Sob o discurso da mãe honesta e assexuada, essa Mãe com letras garrafais, é a mulher mais valorizada e reconhecida na canção popular. Eu disse mulher? Mas o que vemos aqui é que toda mãe é santa e toda mulher é degenerada, logo a mãe não é mulher. A santa mãezinha, como é retratada nas canções, é virgem como a Virgem Maria, dá a vida pelos filhos, é a imagem do sacrifício. Nesse embate, qualquer mulher será a “outra” na vida de um homem. Toda mulher representa o perigo, como podemos lembrar em canções como “Coração Materno”, de Vicente Celestino, onde a garota pede o coração da mãe do rapaz como prova de amor. Ou em “Mamãe” de Herivelto Martins e David Nasser, a Rainha do Lar condenada ao chinelo na mão e ao avental sujo de ovo, visão que o “menino grande” gostaria de reviver para sempre.
Fátima Guedes conseguiu subverter essa imagem sacralizada da mãe na canção “Mais uma boca” – enquanto, sem nenhum romantismo a personagem da canção tem um filho, seu marido é procurado no bar em que se embriaga cotidianamente:

Quem de vocês se chama João?
Eu vim avisar, a mulher dele deu a luz
sozinha no barracão.
E bem antes que a dona adormecesse
o cansaço do seu menino
pediu que avisasse a um João
que bebe nesse bar,
me disse que aqui toda noite
é que ele se embriaga.
Quem de vocês se chama esse pai
que faz que não me escuta?
É o pai de mais uma boca,
o pai de mais uma boca.
Vai correndo ver como ela está feia,
vai ver como está cansada
e teve o seu filho sozinha sem chorar, porque
a dor maior o futuro é quem vai dar.
A dor maior o futuro é quem vai dar.
E pode tratar de ir subindo o morro
que se ela não teve socorro
quem sabe a sua presença
devolve a dona uma ponta de esperança.
Reze a Deus pelo bem dessa criança
pra que ela não acabe como os outros
pra que ela não acabe como todos
pra que ela não acabe como os meus
(“Mais uma boca”. Fátima Guedes, 1980)

A mãe nessa canção sabe que a dor virá na vida de seu filho. E aquela que avisa o pai torce para que essa criança não termine como os outros, como os dela: a miséria está declarada, do ponto de vista feminino, sem qualquer ilusão.
Em um outro ponto de vista feminino, agora da mãe para as filhas, Alice Ruiz e Alzira Espíndola apresentam nessa canção o resultado de uma conversa em que discutiam os problemas de suas filhas adolescentes:

Amor que se dedica
Amor que não se explica
Até quando se vai
Parece que ainda fica
Olhando você sair
Sabendo que vai cair
Deixar que saia
Deixar que caia
Por mais que vá sofrer
É o jeito de aprender
E o teu caminho
você vai percorrer
Se você vence, eu venço
Se você perde, eu perco
E nada posso fazer
deixar você viver
Enchemos a vida
De filhos
Que nos enchem a vida
Um me enche de lembranças
Que me enchem
De lágrimas
Outro me enche de alegrias
Que enchem minhas noites
De dias
Outro me enche de esperanças
E receios
Enquanto me incham
Os seios
olhar você sofrer
olhar você aprender
olhar você crescer
olhar você amar
olhar você...
(“Para elas”, música de Alzira Espíndola, letra e poesia enxertada de Alice Ruiz, 2005)
A experiência de vida dessas duas mães mostrou que as interferências são inúteis no crescimento emocional de suas filhas. Deixar que os filhos conheçam e escolham os seus caminhos contrasta com a mãe assexuada e incapaz de se transformar, que carrega seus filhos sempre como crianças, também cristalizadas. A canção mostra o afeto e a dor com o sofrimento dos filhos, mas também a determinação de deixar que tenham suas próprias experiências na vida.
Nei Lopes, cantor, compositor, advogado e escritor premiado por seus poemas em defesa da causa negra, gravou em 2004 um samba de sua autoria onde mais uma vez encontramos o discurso normatizante sobre as mulheres:

Mulher a gente trata com respeito
força, dá carinho e sobrenome
Mas, um detalhe só
De paletó, eu não aceito!
Mulher de paletó
Pra mim é homem
Se livrou do espartilho
Evitou ter mais filho, queimou sutiã
Inventou o biquíni
Pôs maxi e mini, e eu sempre seu fã
Mas guardo na minha memória
O olhar da Vitória, irmã da Loló:
Não sabe se ata ou desata
Se é echarpe ou gravata, blusa ou paletó
Ela é executiva
É legislativa, é judiciária
O ardor feminista
Fez grandes conquistas em todas as áreas
Mas trago na minha lembrança
A mulher do Seu França já de Maceió
Não sei se ela é coco ou se é xote
Se é calça ou culote, blusa ou paletó
Já fumou meu cigarro
Dirigiu meu carro, já fez o que quis
Já foi mais atrevida
Do que Beth Friedam[2] e Leila Diniz
Mas tenho no meu pensamento
Uma mulher sargento de Gericinó
Não sei se é quépi ou dragona
Gandola ou japona, blusa ou paletó
(“Mulher de paletó”. Nei Lopes, 2002)
Nei Lopes reclama das mulheres que usam roupas consideradas por ele masculinas. Ele diz que faz tudo por ela, dá o seu sobrenome, é seu fã e até "deixou" que ela dirigisse seu carro e fumasse seu cigarro (há maior evidência do que essa do olhar sujeito-objeto, onde tudo se torna propriedade masculina, portanto hierarquizada?). E novamente encontramos na letra a relação do feminismo e suas conquistas como tendo masculinizado as mulheres. A canção mostra claramente que ele é não das mulheres, e sim de uma representação masculina do feminino.
É frustrante a permanência desse discurso entre aqueles que aparentemente se revoltam contra a opressão da raça ou de classe: o gênero é quase sempre ignorado, e a opressão sexista ainda recai sobre as mulheres em todas as camadas sociais. Também é surpreendente a não percepção de que vivemos ainda, a despeito das conquistas feministas, em um mundo masculinizado, onde a linguagem também se aplica a esse raciocínio.
Cabe ainda destacar que, da mesma forma em que é visível a feminilização do discurso em algumas canções de compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil ou Chico Buarque, também localizamos a misoginia no discurso de algumas compositoras, o que pode ser evidenciado nos trabalhos da cantora e compositora de funk Tati Quebra-Barraco, onde ela apenas inverte a questão, tratando os homens como submissos à sua vontade. Apontada de forma totalmente equívoca como feminista em alguns trabalhos especializados na imprensa e na academia por ser uma mulher que diz o que quer sobre o sexo, portanto liberada, seu discurso é tão sexista quanto o discurso masculino hierárquico. O fato de se tratar de uma mulher não traz nenhuma subversão ao seu texto. O mesmo acontece no trabalho da compositora Ângela Ro Ro – apesar dos achados poéticos em suas canções, e de ter sido uma das compositoras pioneiras a tratar do amor entre mulheres, essas relações também aparecem hierarquizadas. Margareth Rago vai chamar a atenção sobre essas inversões:
[...] como foi e tem sido possível a existência dessa forma de subjetividade egocêntrica e narcisista entre as feministas, se estas mesmas estiveram criticando incisivamente as relações de poder e as formas de sujeição de e entre homens e mulheres? Como o feminismo pode acolher um modelo masculino de relação, baseado na exploração e opressão entre mulheres e fortalecer aquelas que se beneficiam de determinadas situações e status para afirmarem hierarquias entre as próprias mulheres? Hierarquia e feminismo deveriam ser termos antitéticos, como nos ensinou o feminismo libertário do passado, através das experiências de figuras como Emma Goldmann, Luce Fabbri, Maria Lacerda de Moura, as “Mujeres Libres” espanholas e tantas outras. Em se tratando da construção de novas formas de vida em sociedade, mais humanizadas e solidárias, já sabemos que não é suficiente um mundo feminista, se não for libertário. (RAGO, 2004:36-37)
Romper com a lógica identitária também no universo masculino das palavras se torna um ato subversivo. E é isso o que vem sendo realizado por várias compositoras brasileiras em diferentes tempos, como Rita Lee, Ana Terra, Sueli Costa, Fátima Guedes, Alice Ruiz, Alzira Espíndola, Andréia Dias, Mathilda Kóvak, Vanusa, Luli e Lucina entre muitas outras. Enquanto mulheres como essas reivindicarem a subjetividade e reinventarem a singularidade, terá valido a pena os anos de lutas das feministas por uma sociedade melhor, e a musa na canção popular deixará de ser binária e estática para se transformar em múltipla inspiração.
Elas nunca cessam de expor e explodir o racismo, o masculinismo, a violência masculina, e a monotonia destruidora de almas do patriarcado, sem fazer concessões, nem para crenças essencialistas na superioridade das mulheres, nem na possível homologação, dentro do suposto fluxo de identidades pós-moderno que impõem o gênero. Elas tentam combinar complexidade com compromisso ao projeto de empoderamento das diferenças que o feminismo pode fazer. (BRAIDOTTI, 2002).

nota biográfica
Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel graduada em História (1989) e mestre em História Cultural (2005) pela Universidade Estadual de Campinas. Foi violonista e cantora, dedicando-se, desde a sua formação, à pesquisa e divulgação da Música Popular Brasileira. É idealizadora e mantenedora do site MPBNet (http://www.mpbnet.com.br), tendo trabalhado, de 1995 a 2004, na RNP – Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (http://www.rnp.br), Organização Social responsável pela conexão com a internet da Rede Acadêmica Federal, Instituições Federais de Pesquisa e Centros Técnicos, ligados ao MEC e ao MCT.Publicou diversos artigos em periódicos especializados e em anais de eventos.Atua na área de História Cultural, com ênfase em gênero, subjetividade e composição feminina.Cursa doutorado em História na Universidade Estadual de Campinas desde 2006, onde desenvolve o projeto “Navalhanaliga: a poética feminista de Alice Ruiz”, orientada pela Profa. Dra. Margareth Rago. É bolsista DR-2 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/4273028811847340

Bibliografia

BRAIDOTTI, Rosi
___ “Diferença, Diversidade e Subjetividade Nômade”. In: Labrys, Estudos Feministas, nº. 1-2, Brasília: Montreal: Paris - Julho/Dezembro de 2002 (http://www.unb.br/ih/his/gefem).
HOLLANDA, Heloísa Buarque
___ “Novos tempos”. In: Labrys, Estudos Feministas, nº. 3, Brasília: Montreal: Paris - Janeiro de 2003 (http://www.unb.br/ih/his/gefem).
IRIGARAY, Luce
___ “A Questão do Outro”. In: Labrys, Estudos Feministas, nº. 1-2, Brasília: Montreal: Paris - Julho/Dezembro de 2002 (http://www.unb.br/ih/his/gefem).
LIMA, Mariana Semião
___ Rap de batom: família, educação e gênero no universo rap. Dissertação de Mestrado. Campinas: FE, 2005.
RAGO, Margareth
___ “Feminizar é preciso: por uma cultura filógina”. In: São Paulo em Perspectiva, vol. 15 nº 3. São Paulo, July/Sept. 2001.
___ “Feminismo e subjetividade em tempos pós-modernos”. In: Costa, Claudia Lima; Schmidt, Simone Pereira. (Org.). Poéticas e Políticas Feministas. Florianópolis: Editora das Mulheres, 2004.
WOOLF, Virgínia
___ Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, 1990.

 

[1] A data refere-se ao ano de gravação das canções.
[2] Mantive a forma grafada no CD do compositor. O correto é Betty Friedan.
 
labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier/juin 2010 -janeiro/junho 2010
   

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