Crédito : Reprodução
Por Rita Colaço - O texto que escrevi semana passada
comentando a entrevista que a modelo internacional Lea T concedeu ao
Fantástico gerou debates – como desejável, pelo tema abordado.
A
fala da modelo me fez recordar o quanto essa discussão – da violência
simbólica presente no sistema de gênero, suas dinâmicas e reproduções
irrefletidas – havia sido abortada pela primeira geração de ativistas do
movimento homossexual (LACERDA apud SILVA, 1998, p. 36). Le
mbrei-me
do quanto se estabeleceu uma espécie de dogma em torno da desesperada
busca por um feminino ideal, um feminino determinado desde fora; da
busca alucinada que tem levado mulheres ditas “cis”, travestis e
mulheres transexuais a resumir todo o projeto de suas existências nessa
ânsia inatingível. Lembrei-me das deformidades, mutilações e incontáveis
mortes causadas pelo uso do silicone industrial e da ausência de
críticas a essa corrida desesperada ao feminino idealizado e imposto.
Mortes também contabilizadas entre as mulheres “cis”, em sua desenfreda
busca pelo “corpinho sarado”.
Para expressar minhas percepções, produzi o texto "Lea T põe o dedo nas
feridas do sistema de gêneros", publicado aqui no Brasília em Pauta.
Nesse texto, eu termino com duas interrogações categóricas:
Houve
quem concordasse, houve quem divergisse. A crítica mais contundente
veio do ativista interssex e pesquisador argentino Mauro Cabral.
Ele escreveu:
"Me
parece que la que atrasa 30 es Rita Colaço. No puedo creer que escriba
que "...ninguém jamais ousou questionar a ordem simbólica que levou e
leva milhares de transexuais pobres à morte pelo uso indevido de
silicone industrial? Por que todos se limitaram e se limitam a
reivindicar a cirurgia como a grande panacéia para todas e todos?" Me
parece que esa afirmación revela la absoluta ignorancia de la autora
respecto de la producción crítica trans. Lamentable."
Disse
ainda Mauro Cabral: “Y, como dije antes, usar el ejemplo de Lea T para
decir que en Brasil nadie ha dicho nunca nada en 30 años es como usar de
ejemplo a Pamela Anderson para decir que el feminismo norteamericano
nunca debatió los estereotipos de género."
Mauro
ainda me fez a gentileza de trazer alguns links que corroboram sua
assertiva. Por meio deles eu pude rever meu ponto de vista e concordar
com ele que, sim, eu fizera afirmativas generalizantes e inconsistentes.
A
partir dessas fontes trazidas pelo Mauro, pude perceber que, sim, já há
vozes dissidentes dentro do movimento trans. Ainda que minoritárias,
como o próprio Xande (Alexandre Peixe dos santos) reconhece, mas que
fazem a diferença – a total diferença:
Não
se trata em absoluto em supor que existam apenas esses dois pontos de
vista. O movimento trans, como o lésbico e o gay, e aquele que busca
construir a luta conjunta e se apresenta na cena pública através da
sigla LGBT, possuem posicionamentos diversificados – o que é, de meu
ponto de vista, sinal de vitalidade. Trata-se de reconhecer publicamente
o erro de minha afirmação, pois generalizante e desatualizada.
Mauro, com a sua crítica, me fez sentir muita alegria. - Jamais me alegrei tanto em reconhecer um erro.
* |
Tenho
muita alegria em ler textos como os de Aline Freitas, pois vão no mesmo
sentido daquilo que Lea T buscou comunicar em sua entrevista para o
Fantástico. Mas não posso de maneira nenhuma silenciar diante de vozes
que tentam desqualificar as críticas formuladas pela top model, sob o
triste argumento de que ela “não domina a teoria do gênero”. Como
sustentei nas redes virtuais, um tal discurso apenas reproduz e reafirma
o mesmo mecanismo da violência simbólica a que esses segmentos tanto
tem sido alvo ao longo da história – agora pela via do discurso de
autoridade.
Embora denunciando vigorosamente semelhante equívoco, não deixo de me revigorar diante de vozes como as de Xande (A Patologização da identidade de gênero: Debatendo as concepções e as políticas públicas), Aline Freitas (traduzindo "Eu não sou minha cirurgia" e no autoral "Mulheres trans e o movimento feminista")
e Janaína Lima (a quem ouvi proferir uma essencial crítica ao sistema
de gêneros em Brasília, por ocasião da I Conferência Nacional para
Políticas LGBT, no ano de 2008). São vozes que, junto com Lea T, ousam
contestar a normatividade do gênero, do estilo de gênero e da orientação
sexual - inclusive no interior do próprio segmento. Ainda que algumas
delas por vezes incorram na reprodução da lógica da desqualificação.
Através
de Mauro Cabral, me congratulo com as e os transexuais brasileiros que
já se encontram a produzir esses questionamentos fundamentais, e me
retrato publicamente com os e as ativistas trans do Brasil, por haver
proferido afirmações desatualizadas.
*Rita Colaço é graduada em Direito, mestre em Política Social e doutora em História Social.
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